Lembras-te do tempo em que passávamos horas perdidas a conversar?
Fecho os olhos e sinto o teu cheiro, ao cair da tarde, quando as pessoas fugiam, e as gaivotas apareciam, barulhentas e brincalhonas, para tomarem conta da praia
Lá mais ao longe, os barcos dos pescadores chegavam da faina, arrastando e puxando redes cheias de peixe ainda a saltitar. E eu ficava ali à tua frente, a tiritar de frio, enrolada na toalha molhada de mil mergulhos dados, com o corpo a pingar, as mãos cheias de areia
Tantas páginas te escrevi, para guardar na memória do papel as nossas confidencias
Os meus padrinhos não percebiam porque gostava eu tanto de ficar na praia até tarde, ao frio, quando toda a gente se vinha embora.
Mas era no silencio-de-gente que eu te podia ouvir. Muitas vezes me ralhavas, de mansinho, em palavras de pai que eu não conhecia. E quando eu chorava, sentada à tua frente com mil perguntas, mandavas as ondas mais suaves fazerem-me festas nos pés, até as minhas lágrimas secarem com o teu sal.
Outras vezes, estavas tu tão alterado, que eu me sentia pequenina demais para te questionar.
Aí, ralhavam comigo os banheiros, que queriam ir descansados para casa, e me expulsavam da praia sem rodeios.
Sentava-me no paredão, a olhar-te revolto e surdo, ao mesmo tempo que me gritavas deixa-me em paz!!.
A última vez que te vi assim, na Nazaré, jurei-te que nunca mais voltava. E cumpri.
Quando te reencontrei em Peniche, senti-te distante.
Não me deves ter reconhecido, estava mais velha, já adolescente, e as perguntas que te fazia tinham perdido a inocência de criança. Perguntei-me da vida e da morte, e apenas me falavas de eternidade, do ciclo renovável da existência.
E eu fingia que não te via, dançando nas dunas quentes de areia, a salvo de olhares indiscretos e olhando-te de soslaio, enquanto o meu coração perguntava baixinho quando te sentiria meu de novo. Nunca nessas ondas me acolheste de bom grado.
Voltei a cruzar-me contigo no Cabo Carvoeiro.
Tu, na tua plena imensidão e bravura, agreste com as rochas e comigo, que estava de novo a importunar-te. Desta vez tiveste que me ouvir.
Cantei-te canções ao sabor do vento, voltei a escrever-te enquanto te debatias no fundo dos penhascos. Fiz da minha presença sobre ti uma constante de todos os dias dessas férias de Verão.
Ano após ano, ansiava chegar ao teu lado, para depois das boas vindas, recomeçares de novo a dizer-me que nada tinhas para mim, que as muletas que procurava nos outros, teria de as encontrar dentro de mim. Respondia-te que não queria muletas, precisava apenas de amor. Mas tu tinhas um planeta inteiro para amar
No último Verão abandonei-te com rancor, no ano de todas as desistências.
Não voltei a ver-te.
As praias que daí se seguiram, nada tiveram a ver contigo. Encontrei-te mar conformado, cheio de gente que não te escutava, fiz-me uma delas também, e mesmo que deixe a tarde cair, nunca mais me falaste ao ouvido.
Sei que cresci. Talvez não me reconheças.
Mas tenho esperança de, um dia, encontrar uma praia desconhecida, onde nunca nos cruzámos. E que aí, de repente e sem aviso, tu voltes a falar só para mim. Que me digas que me amas, que sentiste a minha falta, que perguntaste por mim aos ventos do sul e às gaivotas que passam.
E sorrindo, com os meus filhos pela mão, eu te possa dizer que segui o teu conselho.
Que me fiz Mulher, pus de lado fantasmas e desamores, e gerei no ventre a alegria de dar vida, na dávida suprema do Amor.
Tenho esperança que então me sorrias, me abraces e me deixes chorar de alivio, fazendo do teu sal o caminho do meu consolo.
Até lá, podes ter noticias minhas. Basta perguntares com jeitinho, a quem se deixar ficar aos teus pés depois do sol se ir, se sabe como estou e se demoro muito a voltar