I - Progenitores
Existem certos aspectos da vida que nos marcam para sempre. Muitos. Cravados a ferro e fogo nas memórias difusas que incomodam ou dão esperança à medida que vamos crescendo.
A versão do outro lado das condições e desenvolvimento do meu nascimento só me foram reveladas aos 30 anos.
Passei por isso toda uma vida a tecer conjecturas e a sonhar que era uma princesa raptada por gente má, o que me roubou ao meu grandioso destino.
Sempre soube que era adoptada.
A minha mãe Belmira (de criação) sempre teve o cuidado de me dizer que a minha mãe Georgete (sua sobrinha directa), me tinha abandonado, que era uma desavergonhada que engravidou aos 16 anos, e nem sabia quem era o meu pai.
E que, por circunstâncias da vida, me tinham posto nos seus braços com 9 meses de vida, para que ela me criasse e evitasse que eu morresse de fome e de pancada.
Quando fiz 30 anos, consegui obrigar a minha mãe natural a contar-me como tinha tudo acontecido.
Portanto, a primeira versão que conto é a dela.
Nunca mais hei-de esquecer a primeira vez que vi o teu pai. Alto, louro, de olhar claro e intenso, era bem diferente do resto dos homens que andavam em Rio Maior a amanhar o campo. Vinha todos os anos à região, com o tractor, e daquela vez consegui que notasse a minha presença.
Eu era franzina, apesar dos meus já 15 anos e de ter a mania que era uma mulher. Sei agora que era apenas uma menina que nunca pôde brincar com bonecas.
Palavra puxa palavra, olhar choca com olhar, e acabámos enrolados num tomatal.
Confesso-te que não sabia muito bem o que estava a acontecer. Sentia apenas que sabia bem, agora reconheço que, para 1ª vez, a coisa não correu mal.
Enquanto durou aquela Primavera, foram muitos os nossos encontros e acabámos por nos apaixonar.
Quando a jornada daquele ano terminou, ele chamou-me com ar sério e disse-me:
- Geta, já não sou uma criança como tu és ainda, embora não o queiras aceitar. A diferença de idades entre nós é muita, mas estou verdadeiramente apaixonado por ti. É contigo que eu quero viver o resto dos meus dias. Não te disse ainda, mas há alguns anos que vivo com uma mulher de quem tenho 4 filhos. Vou agora falar com ela, terminar a nossa relação, mas vou garantir sempre o sustento dos meus filhos, isso tu tens de aceitar. Peço-te que esperes por mim, voltarei com a minha situação clarificada, para podermos casar e viver felizes -
A notícia apanhou-me desprevenida. Não sabia se havia de chorar e bater-lhe por não me ter dito que tinha mulher e filhos, ou se pulava de contente por aquele homem lindo e maravilhoso estar a dizer que me amava e que queria casar comigo.
Separámo-nos nesse dia com a promessa mútua de nos voltarmos a encontrar quando ele voltasse à minha terra, o que seria o mais cedo possível.
Aquela separação, embora pontual, deixou-me um aperto no peito.
Há medida que o via afastar, as lágrimas corriam-me no rosto, e eu tentava a custo contê-las, repetindo para mim própria que ele ía voltar!
Quando cheguei a casa, a minha mãe, tua avó Irene, percebeu que eu não estava bem.
Fiquei surpreendida pela genuinidade da preocupação que o seu rosto denotava.
Afinal, a minha mãe não me ligava importância nenhuma, a não ser para me puxar as orelhas quando eu não tomava bem conta dos meus irmãos.
Respondi-lhe num fio de voz que o Zé tinha ido embora. Não valia a pena esconder, porque toda a aldeia falava do caso, e a minha mãe decerto já tinha ouvido zuns-zuns.
Se negasse ou tentasse disfarçar, ainda levava um bom par de estalos.
Por isso contei tudo. O que tinha acontecido, que gostava dele, e que íamos casar.
A tua avó mandou uma gargalhada sarcástica.
- És mesmo parva, fedelha! Alguma vez um homem daqueles quer mais alguma coisa contigo do que te saltar para cima sempre que aqui estiver a trabalhar!
Com aquela frase me fiquei. Secaram-me as lágrimas, e finquei a esperança de que o amor que sentia era correspondido na sua plenitude.
Sim ,ía esperar.
Sem saber porquê, nas semanas que se seguiram, a minha barriga começou a crescer.
Não podes esquecer que na época a informação era nula, não era como agora que os miúdos sabem tudo, e eu não sabia mesmo o que estava a acontecer com o meu corpo.
As risadas sardónicas da minha mãe continuavam pelos cantos, à medida que eu vomitava e me sentia mal, e foi a D. Teresa da mercearia que me disse, depois de lhe vomitar aos pés ai que a cachopa tá prenha!
Voltei para casa ruborizada, sem trazer os feijões que tinha ido buscar.
Bati com a porta ao entrar e atirei-me para a cama lavada em lágrimas.
- Então, o que foi agora? O tom de voz da minha mãe era ameaçador
- Ai mãe, a D. Teresa diz que eu estou prenha. Como isso é possível? Eu não mandei vir nenhum filho!!!
- És mesmo estúpida! Então pensavas que podias andar a fornicar por esses campos fora, sem sofreres as consequências???
- Ó mãe, não pode ser! Eu não sabia! Porque não me avisaste?
- Já tens bem idade para cuidares de ti e ele também. Agora, arranja-te que eu não estou para sustentar bastardos!
E dito isto, saiu, deixando um rasto de desamparo no ar.
Os dias seguintes foram um autêntico pesadelo. Sentia-me confusa e só.
Não tinha qualquer empatia pelo ser que estava a crescer dentro de mim. Sentia-o como um intruso. Como um entrave à minha felicidade. Como iria reagir o Zé quando lhe dissesse que estava grávida? Ele já tinha 4 filhos, e a vida não era nada fácil. Provavelmente deixava-me.
Fui ter com a Ti Carolina, velhota famosa por resolver estas coisas com as suas beberragens de ervas. Deu-me um chá para beber durante 3 dias, que paguei trabalhando para ela de sol a sol durante muitos mais.
A mistela tinha um sabor tão horrível, que eu vomitava ainda mais, sempre que a bebia. No fim do 3º dia, não consegui sair da cama, tão fortes eram as dores de barriga.
Barriga que continuava a crescer a olhos vistos.
Não me lembro quanto tempo passou mais. Estava resignada. Levava a minha vida do dia-a-dia como se fosse um autómato. Estafava-me o máximo que podia, com esperança de que o meu corpo não aguentasse, e expulsasse o feto.
Cheguei a atirar-me de uma escada abaixo para ver se resultava. Mas nada adiantou. Além de um cansaço brutal e muitas nódoas negras, nada mais consegui, a não ser continuar a ver a minha barriga a crescer.
Fui alvo de muita chacota.
Pelos caminhos da aldeia, já noite, quando regressava a casa, os homens à porta da taberna gritavam-me
- Ó jeitosa, quando desovares, quero ser eu a seguir!
Mantinha-me longe da tentação de me matar, a esperança que, no fundo, sentia.
Esperança de que o teu pai voltasse para mim. Que acolhesse de braços abertos a ideia de termos um filho.
Sabia que o que tinha acontecido entre nós não era apenas fornicar, como dizia a minha mãe.
Podia ser muito nova e não perceber nada dos factos da vida, mas sentia que existia amor entre nós. Algo mais para além da pele.
Um dia, quase à noitinha, bateram à porta.
Com força. Com determinação.
Dei um salto da cadeira, enquanto o meu coração disparava.
Era ele, só podia ser ele!
Dirigi-me à porta, tentando compor o cabelo desajeitadamente.
Pus um sorriso rasgado no rosto, enquanto dentro de mim, só ecoava um
- Eu sabia .. eu sabia . Eu sabia . Ele voltou para me buscar!
E abri a porta.
(continua)