Porque viver, sobrevivendo, é uma questão de simplicidade...
Quarta-feira, 23 de Março de 2005
Sem Raizes - 5 (Batam palmas que vou nascer!)

Agarrei na chave que o recepcionista me deu, e corri pelo corredor para me enfiar no quarto.


Respirei de alivio quando percebi que o cara-de-lobo, bem, é melhor começar a chamar-lhe Fernando, não tinha vindo atrás de mim.


Passámos muitas vezes um pelo outro, até porque ele estava também hospedado naquela espelunca, e sempre que acontecia, recebia um efusivo cumprimento, a que respondi sempre com um simples maneio de cabeça.


 Por sorte, a pensão tinha ficado sem empregada de limpeza, e ofereceram-me o lugar. O trabalho era imundo, o salário, uma miséria, mas pelo menos dava para pagar o quarto e conseguir comer uma refeição quente por dia. Aceitei sem hesitações.


Não valia a pena fazer grandes planos. Ter grandes sonhos. De noite gostava de ficar a olhar para as luzes da rua, para o movimento das pessoas, pensando se seria ali o fim do caminho…


Quando chegou Dezembro, passei muito com o frio. De dia, ainda andava na lida, mas à noite enregelava.


 Logo nos primeiros dias, comecei a ter dores. Pensava que era do frio, ou da tristeza de ir passar, pela primeira vez, o Natal longe dos meus irmãos..


Pelas minhas contas, ainda faltavam 2 meses para tu nasceres, portanto não dei muita importância.


 Mas uma noite, ao bater das doze badaladas, as dores ficaram tão fortes que entrei em pânico. Para ajudar, vi que tinha a cama toda molhada. Comecei a transpirar, como nunca tinha acontecido, nem sequer a trabalhar no campo, à torreira do sol.


Comecei a gemer, cada vez mais alto, até que os gemidos se transformaram em gritos de dôr. Acho que desmaiei


 Quando acordei, senti umas mãos pegarem-me ao colo. Entreabri os olhos. A custo.


Era o Fernando que me pegava. Meteu-me num táxi e levou-me para a maternidade. Sem dizer uma palavra.


Não me lembro de mais nada, a não ser de um enorme relógio na parede, mesmo à frente da minha maca. Os ponteiros rodavam sem pressa, sem piedade da minha aflição.


 Minuto a minuto. Só me lembro daquele imenso relógio. A marcar os pontos da minha dôr.


 Não quero que penses que sou uma mariquinhas. Já sabes o que é um parto, portanto…


Exactamente às 5.55 horas respondeste ao meu apelo, e finalmente saíste de mim.


Não me perguntaram sequer se te queria ver. Ainda bem, porque não queria.


Agarram em ti e levaram-te para a incubadora.


Sou uma mulher rija, sabes? Passadas poucas horas, já estava de pé. Queria sair dali, tirar aquele cheiro de entranhas e desinfectante, atirar o meu rosto contra o vento..


 Na sala de espera, estava o Fernando. A minha primeira reacção foi a de fingir que não o via, mas como, se ele se levantou e se dirigiu para mim com um grande sorriso nos lábios.


- Então cachopa, estás bem?


- Estou. Obrigado por me ter trazido.


 - Não tens de agradecer, só fiz a minha obrigação.


- Obrigação não, que a miúda não é sua filha.


 - Então, é uma menina?


- Sim, é. Mas muito pequena e enfezada.


 - Podias dar-lhe o meu nome…


Olhei-o com ar de enjoada. Que raio queria aquele homem, Deus do céu?


 - Digo-te mais.. Se lhe deres o meu nome, eu registo-a como se fosse minha filha!


O homem estava mesmo parvo!


 - Gostava de lhe chamar Teresa – balbuciei, tentando acabar a conversa.


- Fernanda é mais bonito! E pode crescer tendo nome de pai e não um vazio na certidão de nascimento, já pensaste nisso?


 Eu pensei. Seria talvez a única coisa de bom que podia fazer por ti, dar-te um nome de pai, mesmo que não fosse o verdadeiro.


Enfim… O resto da história, acho que já te foi contada.


Eu fico por aqui.


 Olhei-a, uma vez mais sem saber o que dizer. Sim, eu sabia como a história tinha continuado. Sabia uma versão.


 Não lhe consegui arrancar nem mais uma palavra.


 Deu-me um beijo seco de despedida.


Era o nosso 3º encontro.


 Seria o último. Nunca mais a vi.


 (continua)


 


 Aproveito para vos desejar uma PASCOA muito Feliz, cheia de guloseimas! Para os Católicos, que seja um período de introspecção e reflexão, a que não faltem, é claro, as amendoinhas! Até segunda!



publicado por Fernanda às 12:28
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De Anónimo a 27 de Março de 2005 às 00:16
Muitos parabéns... escreves maravilhosamente bem. Acho que a tua vida dava realmente um livro, como se costuma dizer. E gostava de te lançar um desafio: por que não dares continuidade à tua história? Escreveres como tem sido a tua vida, até ao momento presente? O que te parece?Carla
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(mailto:Car_lotad@clix.pt)


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