Passavam 5 minutos das cinco e cinquenta da manhã, quando abri os olhos.
Levantei-me de sopetão e corri para a janela, sorvendo o cheiro da noite.
Sempre adorei a noite, em que todos os gatos e actos ficam pardos, sem que por isso percam a cor .
Respirei ainda mais fundo, e acendi um vergonhoso cigarro, desamigo de todas as horas.
Por entre a dança de fumo, vi-os aproximar.
Primeiro, cambaleantes por entre as folhas das palmeiras, que se erguiam em mudos gritos de geada. Depois, com passo mais firme, em minha direcção, trilhando caminhos de mil passos recontados.
Aguentei firme, aguardando pelos seus contornos, que se definiam na penumbra.
Os meus cães quedavam-se em silencio, de focinho absorto no ar, como se estivessem hipnotizados
Não havia qualquer som no ar, a não ser a respiração suave do meu bebé, que dormia como o anjo que é.
Pensei em fechar a janela, mas percebi que não valia a pena.
Permaneci ali firme como pedra, engolindo saliva, para que o coração não me saísse pela boca.
E eles chegaram. Olhei-os de frente. Um a um.
No cinzento da noite quase dia, não pareciam tão assustadores.
Escancarei a janela e disse em voz firme:
- Sejam bem vindos, fantasmas. Façam o favor de entrar!
Sentei-me no calor da minha cama, enquanto os via dançar pela sombra.
Não sei se procuravam algum lugar para se sentarem e esperei que se aquietassem. Um a um, resvalaram suavemente até aos pés da minha cama, e permaneceram imóveis, enquanto me olhavam curiosos.
- Obrigado pelo convite sibilou o mais brilhante há muito tempo que o esperávamos.
A sua voz soava pouco mais do que um murmúrio, ecoando mares longínquos presos num búzio do mar
Senti-me inesperadamente tranquila.
- É chegada a hora retorqui mal movendo os lábios de nos enfrentarmos, para conseguirmos alguma paz.
- É verdade respondeu o mesmo fantasma estamos já cansados de malharmos eternamente em ferro frio..
Passei os olhos pelos outros, que revelavam sinais de profundo cansaço.
- Somos os teus fantasmas pessoais, cada um de nós criado pelo desenrolar da tua vida, alimentados pela tua alma e pelo teu carácter começou outro a falar e estamos aqui para te pedirmos que nos deixes descansar
Olhei o meu filho que continuava a dormir o sono dos justos e limpos.
Fechei os olhos para ecoar memórias que sabia que não tinha.
- Gostava tanto de voltar a ser criança suspirei
- Nós sabemos, mas isso só poderá acontecer de novo se resolveres os assuntos que tens pendentes..
- Eu sei respondi num fio de voz está na hora de vos enfrentar!
Olhei-os de olhar bem desperto. O mais brilhante ecoava a abandono e nele vi reflexos de alguns rostos, todos amados de longe.
O mais pequeno cheirava a medo, a intimidades de que sempre fugi, por me terem sido arrancadas antes de tempo.
O mais discreto, tinha tatuada no rosto uma cicatriz profunda de desencontro, e nele vi o espelho do rosto do meu pai Quase tinha vontade de lhe tocar, tal a saudade e a mágoa que me afligiram
O mais discreto, de sorriso irónico, olhava-me sem pressa.
Custou-me perceber o que significava. Mas num relance de olhar, percebi. Continha nele todas as minhas frustrações, os pontapés de destino que tinha dado com leviandade.
Fechei os olhos, sentindo um frio de morgue.
- Falto eu disse um outro que mal tinha notado e não te canses a adivinhar! Sou o único fantasma que não nasceu no Passado, mas que tu criaste no Desconhecido.
- No Futuro- pensei eu, sentindo a cabeça a rodar
Todos os espelhos do quarto cresceram, em tamanho e numero, como se tivessem vida própria.
Pensei no Quebra Nozes que tanto me tinha assustado em leituras de criança. Respirei fundo, abanei a cabeça com força e olhei a minha imagem mil vezes distorcida.
Agarrei a mão do meu filho adormecido, e aclarei a voz.
- Tenho uma coisa para vos dizer e tentei aclarar a voz dando-lhe firmeza ao mesmo tempo que me levantei.
Todos vocês têm razão de ser, mas eu sou um pouco mais que a soma do meu Passado com o meu Presente e as minhas perspectivas de Futuro.
Cada ruga que vêem aqui, cada estria, cada canto disforme, conta uma historia de vida e de luta para preservar e dar forma a essa vida.
Cada mágoa que guardei no meu ser, cada sulco de lágrima, têm uma razão de ser. Não as vou renegar.
Vou sim sentir orgulho em cada marca que me torna mais eu, mais sui generis, por mais que eu queira fingir que não me doem.
É através da dor que eu cresço cada dia, é através da dávida que essa dor se torna suportável e frutuosa.
Não esqueço os meus defeitos, nunca deles me consegui abstrair, até eles se tornarem um fardo ofuscante de tudo o resto que Sou.
Porque eu SOU.
Alem de Mãe, sou Pessoa, sou Mulher inteira partida em mil, que se refaz em cada hora que passa.
Sinto ao limite cada palavra, cada som, cada rasgo de existência.
Exagerada, sim.
Mas plena de sentimentos e sensações, amorfa por medos estúpidos que sacudo agora como agua do capote!
Não mais me absterei de sentir.
De mostrar que a acção vale mais do que as palavras, sem que as renegue, porque as amo em consolo sempre disponível.
Não mais deixarei que me digam o que fazer, porque cada um sabe pela sua cabeça e sabedoria de vida.
Não mais fugirei de mim.
Quando acabei de falar, estava sozinha.
O sol nascia radioso, espreguiçando-se por entre o verde que passei a agradecer
Como agradeço estar aqui.
Deixando que as lágrimas sequem as magoas que se aquietam suaves, porque sabem que não as renegarei de novo.
Começa hoje um novo ano para mim.
Pequenino, suave, expectante.
Recebo-o no meu imenso colo.
Disposta a deixa-lo crescer e avançar no Tempo, certa de que cumprirá a sua missão.