O sorriso desapareceu do meu rosto num ápice.
À minha frente estava, não o meu Zé, mas uma mulher. De cabelo preto apanhado, ar cansado e olhar duro.
Desviei os olhos dela. Corei. No fundo, sabia quem era.
À sua volta, penduradas nas saias, estavam quatro crianças. Em escadinha, o mais pequenino mal se tinha em pé, e o mais velho chuchava no dedo. Caiu um silencio atroz.
Mandei-a entrar. Sentou-se numa cadeira, enquanto as crianças se sentavam à sua roda, no chão.
Eu estava paralisada. Colada ao chão. Sentindo-me ridícula, mais a minha enorme barriga, de pé feita estátua.
- Não te queres sentar? perguntou a mulher, como se a casa fosse dela.
- Não, estou bem assim respondi num fio de voz.
- Sabes quem sou? e cravou os olhos negros em mim, trespassando-me.
- Calculo baixei os meus olhos.
Olhei aquelas crianças. Quietas. De olhar parado. Cansadas. Expectantes.
- Vim falar contigo para apelar ao teu coração a voz da mulher amansava-se.
- Diga balbuciei a custo. - O meu Zé disse-me que me queria deixar, porque estava enrabichado por uma gaiata.
Aquele olhar negro feria-me a fundo.
- Já não sou uma gaiata retorqui a medo.
- És sim, igual a muitas outras que ele já teve. Mas és a 1ª que o quer tirar de casa.
- Eu não quero tira-lo de casa, ele é que disse .
- Eu sei muito bem o que ele te disse! a sua voz parecia um grito e sei o que me disse a mim!
Não conseguia tirar os olhos do chão, onde as crianças se começavam a agitar.
- Venho apelar para o teu bom coração repetiu ela enquanto fazia sinal aos filhos para que ficassem quietos. - Não venho aqui atacar-te. Venho pedir que te afastes do meu Zé. Ele tem 4 filhos para criar, e tu és muito nova, podes refazer a tua vida com facilidade. O que não é o meu caso.
- Posso ser muito nova, mas gosto mesmo dele e .
- E estás grávida, não é?
Voltei a baixar os olhos, desta vez com vergonha.
- Não sei se o fizeste de propósito, mas olha que são 4 filhos contra um. Ele já sabe?
- Não. Nem eu sabia que estava grávida.
- Ainda bem. Tenho a certeza que ele ía reagir muito mal
- Porquê?
- Não interessa. Não te esqueças que sou mulher dele há muitos anos, conheço-o bem!
Começava a sentir um cansaço enorme a invadir-me. Só queria que aquela visita acabasse para que me pudesse deitar.
- Tu queres esse filho? perguntou a mulher num esgar.
- Não sei .
- Podes sempre deixa-lo no hospital quando fores parir
- Não sei
- Já vi que não sabes nada. Mas eu sei o que faço se tu não deixares o meu Zé.
O tom de voz de ameaça arrepiou-me.
- Juro-te pela saúde dos meus filhos, estas crianças inocentes que vês aqui, que se não deixares o meu Zé..
Sim, o tom era mesmo de ameaça.
- Se não deixares o meu Zé, vou dar parte dele à Guarda. Tu és menor, portanto ele vai para a cadeia. Pode não ficar comigo e com os filhos, mas contigo não fica também!
E dito isto, levantou-se. Quase atropelou as crianças ao dirigir-se para a porta.
- Ficas a saber que ele vai para a cadeia!!!!!!! gritava enquanto puxava pelos filhos.
O estrondo da porta quando ela saiu soou mais forte dentro de mim.
Sentei-me, quase caí na cadeira. Não tinha qualquer dúvida que a mulher estava a falar muito a sério. Se não estivesse tão assustada, quase que tinha pena dela.
Que estúpida! Pena . Devia era ter pena de mim. Bem caras me estavam a sair as voltinhas no meio do campo.
Fechei os olhos, e quase senti o aroma silvestre das flores misturadas com os restos da palha, das ervas amassadas sob o peso dos nossos corpos.
- Ai Zé, que saudades tenho tuas!
A ideia de o ver na cadeia era-me insuportável. Seria mesmo assim? O facto de eu ser menor de idade podia arranjar-lhe problemas tão graves? Que direito tinha eu de lhe destruir a vida? E que vida seria a nossa começando desta forma? Aquela mulher não nos ía dar descanso. Mas não estava contra ela. Tinha o direito de defender os filhos, é claro. Mesmo que tivesse de passar por cima de mim. Foi isso mesmo que ela fez. Sentia-me como se tivesse sido atropelada.
Decidi deitar-me, quando ouvi a porta bater. Era a minha mãe. Não sei de onde vinha àquelas horas da noite, mas foi bom não estar em casa, pois seriam duas a atacar-me.
- Ainda estás acordada, cachopa? Olha que amanhã a jorna é dura.
- Já me ía deitar.
- Estás esquisita, mas isso é normal em ti. És a mais estranha dos meus filhos..
Não lhe respondi, não estava em condições de sustentar uma discussão.
- Disseram-me na venda que tiveste uma visita. Uma mulher desconhecida com um rancho de miúdos atrás.
- Era a mulher do Zé respondi enquanto me despia.
- Logo vi! Veio tirar satisfações? Abençoada!
Queria chorar, mas não conseguia. Precisava de colo, de consolo, mas não era dali que ele podia vir.
- Ela diz que faz queixa do Zé à Guarda e que ele vai preso. Ela pode fazer isso?
Olhei-a com uma réstia de esperança. Mas não adiantou. A confirmação soou quase cruel.
- É assim mesmo! Se não acreditas em mim, pergunta ao teu tio Alfredo, que é policia!
Não quis ouvir mais nada. Fui para o quarto.
As minhas irmãs dormiam como anjos, sem se aperceberem de nada. Ajeitei-lhes a roupa e tive vontade de ser menina outra vez.
Amanhã teria de tomar uma decisão.
Talvez a mais importante da minha vida.
(continua)